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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

VI Encontro dos povos indígenas do Baixo Tapajós e Arapiuns: uma reflexão “libertina”



Durante os dias 27,28 e 29 deste Janeiro, parte do Coletivo Cravos da Libertinagem esteve presente no VI Encontro dos Povos indígenas do Baixo Tapajós e Arapiuns, que aconteceu na Aldeia de Muratuba, uma das comunidades assentadas no interior da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no município de Santarém, Pará. Neste post, uma análise sintética do quadro geral observado durante os dias do evento, feita por mim, Wyncla, um dos integrantes deste Coletivo.
O encontro contou com a presença de representantes dos 12 povos que compõem o Conselho Indigenista Tapajós – Arapiuns (CITA), entre os quais fazem parte, apenas para citar algumas, as etnias Tapajó, Tupinambá, Borari, Cumaruara e Cara Preta. Diante do que se pode observar nos trabalhos encaminhados durante o encontro, a organização dessas comunidades se orienta para a formalização do reconhecimento de sua condição indígena. Essa luta é, nada obstante, atravessada pelo laborioso processo de identificação e demarcação das terras ocupadas por essas aldeias, assim como pela busca das garantias e direitos imanentes ao reconhecimento positivado da indianidade desses povos – direitos esses relativos aos bens e serviços especiais que aos indígenas são previstos pela Constituição Federal, no que se refere, principalmente, à saúde e à educação diferenciadas que o Estado deve ofertar a essas comunidades.
Rinaldo Arruda, em sua síntese acerca da situação dos povos tradicionais do Brasil, afirma que a colonização européia, tal como todos os outros processos de exploração econômica e de uso e ocupação da terra no Brasil, favoreceram um processo de miscigenação racial e cultural pautado pela marginalização das minorias étnicas, assim como pela espoliação, não só territorial, mas também identitária de indígenas e negros africanos. Os grupos humanos surgidos desse processo, que não eram mais indígenas e nem africanos foram, paulatinamente, compondo a parcela sertaneja e silvícola da população brasileira, assentada nos longínquos das florestas úmidas da Região Norte e do sertão árido nordestino, nas margens das instancias sociais, políticas e econômicas onde se estabelecia o centro do poder no país. Nesse quadro, criou-se, e vem se reproduzindo por muitas gerações, um povo mestiço, sem raízes culturais profundas, mas que, ao mesmo tempo, preserva elementos herdados por seus ancestrais, como aspectos de sua cosmovisão do mundo, determinadas técnicas de manejo dos recursos naturais, conhecimento tradicional relativos à homeopatia e, principalmente, práticas econômicas de base familiar. Nesses grupos, Arruda diz que podemos observar a constituição de uma categoria sociocultural que em sua obra ele passa a tratar como “sociedades de cultura rústica”.
Através de uma observação superficial, os povos do CITA são grupos humanos passíveis de serem classificados dentro da categoria proposta por Arruda, ou seja, como integrantes de sociedades culturalmente rústicas – grupos que são tradicionais, mas não necessariamente indígenas, haja vista os elementos fenotípicos das configurações socioculturais desempenhadas por essas comunidades serem insuficientes para ratificar essa condição. No entanto, esta é uma afirmação resultante de uma observação simples e apenas assente na realidade fenomênica objetivada no encontro. Portanto, uma conclusão precisa acerca da idianidade desses povos só será possível mediante estudos mais profundos, que lancem mão de um criterioso rigor metodológico. O objetivo deste post é, nada obstante, refletir a cerca da luta travada por essas comunidades – uma dinâmica evidente no encontro – independentemente da corroboração científica da sua auto-afirmação enquanto povos indígenas, até por que, antes de qualquer elucubração cientificista sobre o tema – uma reflexão que sempre incorre no risco de gerar resultados positivistas, ou mesmo sociologias espontâneas, desnecessárias ao mérito da análise aqui pretendida -, o fato dessas comunidades terem se auto-identificado como aldeias indígenas já é válido para que a legitimidade dessa condição seja, ao menos, amplamente considerada.

Difícil é, entretanto, empreender esta análise sem a constatação de que os povos do CITA têm pela frente uma árdua batalha para o reconhecimento de sua cidadania especial. Essa dificuldade acontece em função da complexidade havida na identificação do caráter particular e diferenciado da condição indígena desses grupos humanos, vez que os elementos constituintes de sua cultura já foram, aparentemente, profundamente afetados pelo contato com a sociedade envolvente, sendo possível, até mesmo, afirmar que essas pessoas já encontram-se, de forma quase plena, absorvidas pelo mundo exterior e, consequentemente, apartadas daquilo que se poderia chamar de sua essência original – o elemento, que, por sinal, seria a causa para o tratamento distinto dessa população.
No encontro foi possível constatar, também, o conflito dialético instaurado entre os povos do CITA e o Estado - nesse contexto, representado pela FUNAI. De acordo com as lideranças presentes, esse órgão não tem promovido um trabalho satisfatório de assistência especializada desses indígenas, vez que estes ainda não são formalmente reconhecidos como tais. Estabeleceu-se, nada obstante, um confronto de interesses onde a luta pelo acesso às garantias previstas aos indígenas tem sido o mote principal. Nessa lógica, para o Governo Federal, a criação de mais terras indígenas implica em um processo de “engessamento” do desenvolvimento nacional, pois a efetivação desses direitos representa obstáculos para as incursões do projeto capitalista na Amazônia – um movimento que incide, principalmente, sobre as riquezas naturais dessa região.

Mesmo que a ciência ou a política não possam classificar essas comunidades enquanto aldeias indígenas, diante da miscigenação através da qual se conformaram esses assentamentos humanos, a luta pelo direito a terra - que nesse sentido é a mesma luta que se faz em busca da dignidade humana - em que eles estão imersos é legítima. A probabilidade da auto-afirmação dessas comunidades não ser reconhecida pelo mundo objetivo não apaga o fato de que elas representam as categorias sociais historicamente marginalizadas no Brasil, e, portanto, que são credoras das relações socioeconômicas estabelecidas nesse pais – uma dinâmica que propiciou a concentração de riquezas por meio da espoliação de etnias inteiras, das quais derivam a população alvo desta análise.
A política indigenista é fundamentada principalmente pela auto-afirmação dos povos, ou seja, a consciência de sua identidade indígena ou tribal é critério basilar para o tratamento distinto desses grupos. Não é possível, porém, descartar a hipótese de que esse critério tem servido como recurso que essas comunidades – e aqui incluem-se também as sociedades de cultura rústica tratadas por Arruda - estabelecidas em contextos econômicos acumulativistas, usam para sobreviver, não apenas no sentido abstrato, ou seja, no que se refere à manutenção da tradição (aspectos étnicos), mas, antes de tudo, no sentido material da existência. E nesse ponto, surge uma dinâmica muito complexa, onde os valores imiscuídos na luta indigenista merecem uma profunda reflexão. Sabe-se, porém, que a dialética havida na realidade do movimento indígena não deve ser tratada de forma meramente burocrática, caso contrário, qualquer possibilidade da promoção de justiça social junto a essas camadas sociais desfavorecidas seria arruinada, pois assim se reproduziria a lógica imposta pelo mundo moderno: uma lógica orientada pela inversão dos valores humanos, na qual o acúmulo da riqueza material subjaz o enaltecimento do espírito.

Fotos: Mazzile Tavares e Wyncla Paz.

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