Who cares

Seja um bom leitor e se indigne com esses disparates postados aqui!

domingo, 11 de dezembro de 2011

A grande corrente


A Grande Corrente

Os músculos, já exauridos de dor, continuavam a executar a prática renitente que impulsionava a canoa rio à cima de uma maneira preternatural, tanto que Francisco estranhou a própria força. Haviam sido seis horas de luta contra àquelas águas lânguidas, e o pescador já não podia distinguir seus braços dos remos que usava _ carne, ossos e madeira fundidos pelo desespero. O sol cada vez mais curvado no horizonte fazia o dia apagado, dando para a mata um aspecto tristonho, negro. Era como se a água, por efeito da luz rarefeita, fosse se transformando em óleo, empregando ao rio uma propriedade sempre mais opressora, cruel.
Trinta e cinco quilômetros separavam Francisco de seu destino final, e consigo levava o medicamento necessário para cuidar da crise de sua filha asmática. Mesmo que não tivesse conseguido trazer o médico e tão pouco algum enfermeiro da cidade, acreditava em seu triunfo, sabia que Cristina estava salva.

Socorro percorria os quatro cantos do posto médico, muito nervosa, a encarar indignada os funcionários incapacitados do lugar. Ao perceber a inutilidade de suas investidas, retornou para junto de seu irmão cardíaco, pois estar ao lado de Antonio, lhe segurar a mão e esperar a chegada da ambulância era o máximo que poderia.
A equipe do tele-jornal local, no posto, ocupava a mesma sala que Antonio, e na edição noturna do tal folhetim, o padecimento execrável daquele homem que implorava por oxigênio seria então jornalisticamente exibido em rede estadual.

Madalena ouvia o arfar estertoroso da pequena Cristina tornar-se cada vez mais tênue, notando que o intervalo entre uma inalação e outra ficava sempre maior. Ela rezava para que não fosse o derradeiro cada um dos pelejantes suspiros de sua filha. Agradecia muito a Deus por todas as vezes que o peitinho sôfrego da menina voltava a se avolumar com o pouco de ar que Cristina ainda era capaz de por para dentro de si _ tão cansada.
O escuro seguiu engolindo o vilarejo onde se esquecia do mundo a família de Francisco. No coração de Madalena a sensação de que, junto com a luz diurna, também se extinguiam as últimas forças da menina, derramou a primeira lágrima daquela noite, sentindo-se quase tão mortificada quanto a filha, que depois das seis horas já não abria mais os olhos, e que depois das sete já não respirava mais.

Socorro pediu para que a equipe de televisão abandonasse a enfermaria, assim, talvez, Antonio conseguisse respirar melhor _ que respeitassem o estado de seu irmão. Nos demais compartimentos do posto de saúde, o cinegrafista registrou a presença sólida de todo desamparo a dominar o local, e por entre uma das folhas abertas da porta da enfermaria acompanhou os últimos instantes de vida de Antonio, que já não gritava com falta de ar, que jazia estendido sobre a maca, não mais a compungir-se, que parecia descansar enfim.

Após doze horas de uma busca inválida, Francisco retornava ao seu ponto de partida para deparar-se com o pranto silente de sua esposa e o corpo macilento de sua filha sem vida. Sentiu um pouco de vergonha de si mesmo por não ter conseguido chorar, tamanha era a sua exaustão. Mas nem lhe era possível pensar, sentir. Apenas deixou-se cair na areia, muito fraco, muito só.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Poderia acontecer


    
     É verdade que ainda tenho cigarros e muita bebida. Eu bebia para esquecer de certos absurdos  cotidianos, mas agora, sempre que bebo, eu os lembro com frequência. Pois por que, então, continuar essa destruição sem sentido? Sentado em alguma mesa cheia do álcool, meu pensamento não acompanha mais as palavras indistintas dos meus amigos. Eu os ouço com dificuldade e impaciência. Essas coisas são caprichos e muitas vezes bobagens minha. Isso me fez lembrar de uma mulher nessas mesas cheias de álcool. Eu não lembro a história, mas vou inventar uma aqui.
     Nessa época eu não fumava, nunca havia posto um cigarro na boca sequer. Porém, eu sempre a via passar tão sedutora, era realmente elegante a maneira como ela fumava. As vezes, eu chegava ao absurdo de pegar as bitucas do seu cigarro só para sentir o cheiro de tabaco e nicotina. Um absurdo, é verdade. Alguma coisa me chamava muita atenção. Ela era tão paradoxa. Era cheio de gestos bruscos e enérgicos por fora, mas ela me dava calafrios, pois dentro ela escondia um coração triste e gélido.
     Um dia ela me surpreendeu me pedindo cigarro "pelo amor de deus! me dá um cigarro?". Foi engraçado. Ela parecia absolutamente necessitada de um. Como eu já havia começado a fumar e tinha cigarros, dei um a ela. Ficamos um tempo conversando poucas coisas. Ela me convidou para ir a um bar, perto de onde estudávamos. Fomos. Muitos cigarros, muito vinho. Fomos para a casa dela. Depois muita libertinagem, sem roupa, apenas libertinagem.