Oliver (Ewan McGregor) é um jovem contemporâneo norte-americano. Classe
média, mora em uma linda casa em Los Angeles, trabalha como designer numa
empresa do momento, é inteligente, elegante, bonito e infeliz. São as reflexões
e memórias desse moço apático que dão forma e sentido ao filme Toda Forma de
Amor (The Beginners, 2010), uma obra que, de modo geral, podemos dizer,
está debruçada sobre a complexidade hodierna das relações familiares. O pai de
Oliver, o curador de arte Hal Fields (Christopher Plummer, ator que ganhou o Oscar por
sua atuação coadjuvante nesse filme) vive seus últimos momentos de vida, vez
que sofre com um câncer terminal. O trágico, no entanto, não reside na
eminência da morte de Hal, homem de terceira idade que atravessa por um
processo relativamente natural de fenecimento. O trágico em The Beginners está
na ironia cruel que envolve a família de Oliver. Após a morte de Georgia (Mary
Page Keller), a sua mãe (um acontecimento apenas citado no filme, mas não
tratado de forma muito objetiva - o enredo da obra se constrói mesmo em torno
da morte do pai de Oliver), Hal decide revelar para Oliver que é gay. Essa
revelação provoca profundos impactos na sua vida, fazendo com que ele comece,
então, a entender melhor o vazio sobre o qual, durante 40 anos, constitui-se o
casamento de seus pais.
The Begginers é estruturado em uma linguagem não linear, que,
portanto, trata a cronologia da vida de seus personagens de forma difusa, quase
líquida. Um recurso que, antes de confundir, faz com que o espectador mergulhe
no universo sincrônico da obra - tão sutis são as fronteiras entre o presente e
o passado na realidade de Oliver. Dessa forma a audiência é levada a perscrutar
a autoafirmação tardia de Hal, assim como as dificuldades que esse homem, no
alto de seus setenta anos, enfrenta ao exercer sua identidade gay, em um mundo
dominado pela juventude.
A incursão de Hal no mundo gay é objetivada a partir das memórias de
Oliver, que narra a transformação do pai por meio de um tom levemente perplexo,
mas, de certa forma imparcial, quase frio.
Esse elemento do filme lhe confere seus momentos mais cômicos, dada a
forma leve, porém não menos livre de um não sei o quê de tristeza e decadência,
com que a imersão de Hal no circuito homossexual de Los Angeles é retratada.
Cristopher Plummer compôs um homem menos amadurecido pelo exercício de sua
natureza do que pelas experiências infelizes da repressão sexual de uma
sociedade puritana. Um personagem muitas
vezes inocente e deslumbrado diante das novidades de uma vida a qual, até
então, só tinha sido possível conhecer as sombras.
Hal passa a participar de coletivos GLS, namora um rapaz 40 anos mais
jovem, e assume o hábitus de senior gay com o qual sempre
sonhou. Vive seu auge pessoal durante quatro
anos, até descobrir que está com seus dias contados. A vida na qual havia tão
recentemente principado, como um jovem no limiar de seus caminhos – a beginner - teria que ser interrompida
de forma inexorável. Ele compartilha
essa realidade trágica apenas com seu filho, o nosso narrador, que passa, com
isso, a carregar nos ombros toda a infelicidade com a qual, acredita ele,
estiveram entretecidas as existências de seus pais.
Diante da constatação de uma realidade subterrânea no seio de sua
família, Oliver começa questionar a lógica sob a qual se apresentava a versão
“oficial” dos fatos que, até então, fundamentavam o seu modo de ver e viver no
mundo. Esses novos dados o fazem viajar
de volta para o mundo solitário de Georgia, a sua mãe, e testemunhar, mais uma
vez, e então incisivamente, a forma como ela estava presa a um casamento
automático e sem vida. Oliver faz uso da memória coletiva de seu tempo - o
espírito impresso nos jornais, nos filmes e nos anúncios publicitários - para
nos dizer como os imperativos sociais foram preponderantes para confinar a
identidade sexual de Hal. Ele mostra, através desses recursos relativamente
externos ao caso, a forma como a sociedade norte-americana operava na a
concepção de um modelo padrão para a instituição familiar. Esse é o plano de
fundo de The Beginners: um argumento que se sugere como o ditame para as
dinâmicas objetivadas no filme. Um plano que fala da crudeleza velada com a
qual são tratadas as relações e os fenômenos sociais que não concordam com
aquele padrão estático e incontestável pincelado nas reflexões de Oliver.
The Beginners tem como acessório fundamental a relação de Oliver
com Ana (Mélanie Laurent), uma atriz francesa que, ao seu modo, também
atravessa por crises existenciais. É no envolvimento desses dois personagens
que se aprofunda o que, digamos assim, podemos chamar de “a moral do filme”. O
romance de Oliver e Ana é intensamente marcado pelos traumas familiares que
esses indivíduos, com destaque para o padecimento de Oliver, carregam para suas
vidas adultas. O casal de namorados não é capaz de escapar da sombra de seus
pais, exemplos práticos do fiasco irreversível que pode ser a vida conjugal.
Estão, portanto, embargados pelo medo de principiar naquela que pode ser a
única tentativa certa de alcançar a felicidade - tão sólida é a herança maldita
de seus progenitores. Psicanálise pura.
A presença marcante de Laurent, e não só isso, como também toda a
atmosfera fluída e a sensação de que o filme foi gravado em grande parte sob
aquela orientação revolucionária de “ideia na cabeça e câmera na mão”, faz com
que, em muitos momentos, The Beginners traga algo do prolífico cinema
francês dos anos 1960 e 70. Mike Mills,
ao que tudo indica, concebeu esse filme como um belo tributo à Nouvelle Vague:
impossível não lembrar de filmes como A
band apart (Jean-Luc Godard, 1964) ao assistir a sequência em que o casal
protagonista vai a um clube de patinação, cria caso por causa do cachorro de
estimação de Oliver, anda de patins pelas ruas de Los Angeles e finda, ainda
sobre os patins, num passeio pictórico pelo corredor de um luxuoso hotel.
O filme é muito bom. Não vou contar o final. Pra isso existem os DVDs
nas locadoras e os arquivos disponíveis na web que podem trazer pras suas
vidas, muito melhor do que este meu texto, a beleza e as verdades nem sempre
belas que The Beginners encerra em si.
Amor,
Wyncla.
Lindo Wyncla:) A cada texto seu, uma surpresa!To louca pra ver "The beginners"!
ResponderExcluirbeijosss
Carol